por Victória Queiroz Costa
Introdução
Como o foco do escritório Valentir Advogados é o direito empresarial, entendemos que este assunto é de grande relevância e merece ser divulgado, uma vez que trata de uma medida de constrição do patrimônio dos sócios em decorrência de dívidas contraídas pela sociedade (desconsideração tradicional) ou do patrimônio da sociedade em decorrência de dívidas contraídas pelos sócios (desconsideração inversa).
A fim de tornar possível maior compreensão sobre o tema objeto deste artigo, deve-se partir do pressuposto de que o patrimônio da pessoa jurídica e de seus sócios é distinto, ou seja, não se confundem.
Entendendo que a pessoa jurídica e seus sócios têm cada um seu patrimônio particular, conclui-se que, em regra, os bens da pessoa jurídica não respondem pelos deveres e obrigações contraídas pelas pessoas naturais que as integram (seus sócios), e vale o mesmo entendimento em sentido inverso (a pessoa jurídica não terá responsabilidade patrimonial sobre os atos praticados pelos seus sócios).[1]
Na prática muitas vezes foram identificados casos nos quais os sócios de uma empresa abusaram da personalidade jurídica, desviando sua finalidadee/ou confundindo seus patrimônios com o dela, praticando atos fraudulentos junto a terceiros.
Nesse contexto, foi desenvolvida a teoria da Disregardof Legal Entity, fazendo com que o patrimônio dos sócios que utilizassem a pessoa jurídica de forma abusiva fosse atingido e vice-versa.
Apesar de tal medida ser reconhecida pelos tribunais e constantemente aplicada pelos juristas brasileiros, até a promulgação do Código de Processo Civil de 2015 este tema não havia sido legalmente regulamentado em termos de procedimento, gerando certa insegurança aos sujeitos que eram alvos da desconsideração (empresários e sociedades).
O que se notava até então era a apreensão de bens dos sócios ou da sociedade (dependendo do caso), sem que os sujeitos fossem convocados previamente a participar do processo e oferecer sua defesa, configurando uma afronta escancarada aos princípios constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa.[2]
Em termos procedimentais, antes da regulamentação formal na legislação pátria a desconsideração da personalidade jurídica tradicional e inversa era feita no bojo do processo a qualquer tempo. Hoje a legislação prevê a possibilidade de ser feito o pedido tanto na petição inicial quanto por meio de incidente processual também em qualquer momento processual.
Assim, aos sujeitos que forem alvo da desconsideração da personalidade jurídica estará assegurado o direito de defesa, havendo por conseqüência, maior segurança jurídica no confisco de seus patrimônios.
Passamos a esmiuçar o procedimento da desconsideração da personalidade jurídica tradicional e inversa. Vejamos:
- Legitimados a instaurar o incidente
A instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica será feita a pedido da parte interessada ou do Ministério Público (art. 133, “caput” do CPC/15). No caso do Ministério Público este poderá instaurar o incidente apenas quando figurar como parte no processo, e não quando estiver agindo como fiscal da lei.
- Momento
Antes de ser regulamentado formalmente o tema da desconsideração da personalidade jurídica, muito se discutiu qual seria o momento adequado para requerê-la, gerando uma série de discussões doutrinárias sobre o assunto.
Com o Novo Código de Processo Civil (2015) este dilema foi sanado, o momento adequado para requerer a desconsideração da personalidade jurídica está previsto no artigo 134 do CPC/15, podendo ser feito em qualquer fase processual (conhecimento/ cumprimento de sentença/ execução fundada em título executivo extrajudicial). [3] Inclusive, perante os tribunais, seja em processos de competência originária ou em grau recursal (art. 136 do CPC/15).
Importante se faz mencionar que a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica tradicional ou inversa é feita quando o juiz da causa constatar que os requisitos para a desconsideração foram preenchidos e proferir uma decisão acolhendo tal pleito.[4]
Portanto, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica passa por um juízo de admissibilidade, podendo ser acolhido ou rejeitado.
Após ser feito o juízo de admissibilidade, o juiz mandará oficiar o distribuidor para proceder com as mudanças necessárias no cadastramento do processo (art. 134, §1º do CPC/15): se acolhido, o sócio ou sociedade passarão a figurar no pólo passivo da demanda e a responder de forma secundária; e, se rejeitado, o sócio ou a sociedade será excluído (a) da demanda.
- Procedimento e Requisitos (art. 133/137 do CPC/15)
Destaca-se que o procedimento de desconsideração da personalidade jurídica é o mesmo para diversos ramos do direito material, o que difere em cada seara são os requisitos exigidos para a concessão deste pedido. Como exemplos, temos: no âmbito do Direito Civil, a aplicação do art. 50; no âmbito do Direito do Consumidor, a aplicação do art. 28; e, no âmbito do Direito Ambiental, a aplicação do art. 4º da Lei nº 9.605/1998.
Ou seja, os requisitos variam de acordo com a natureza da causa, aplicando-se a cada uma delas legislação própria.
É possível fazer junto com o pedido de desconsideração, o requerimento de tutela de urgência ou evidência, cujos pressupostos para a concessão da medida deverão ser avaliados neste contexto.[5] Então, em caso de tutela de urgência o magistrado avaliará se há probabilidade do direito e perigo de dano (art. 300 do CPC/15); e, em caso de tutela de evidência será avaliado se estão caracterizadas as hipóteses dos incisos do art. 311 do CPC/15 (ex.: o requerente da medida tenha apresentado prova documental suficiente de que houve confusão patrimonial, e contra essa prova o requerido não oponha prova apta a gerar dúvida razoável).
Frisa-se que a instauração do incidente de desconsideração suspende o curso do processo principal até o acolhimento ou rejeição de tal medida, porém, tal fato não impede ser feito o pedido de tutela provisória de urgência, visto que tais atos podem ser realizados durante a suspensão do feito (art. 134,§3º e art. 314 do CPC/15).
Nota-se que a desconsideração da personalidade jurídica tradicional e inversa pode ser feita de duas formas: na petição inicial e como incidente processual.
a) Petição Inicial
Caso o pedido de desconsideração da personalidade jurídica seja feito no bojo da petição inicial, tanto do processo de conhecimento quanto no de execução, será feita a citação do sócio ou da sociedade, formando-se desde o ingresso da ação um litisconsórcio passivo originário.
Neste caso, a instauração do incidente será dispensada e o sócio será citado para apresentar seus embargos à execução ou sua impugnação ao cumprimento de sentença no prazo de 15 dias (art. 134, §4º e 135 do CPC/15).
Se houver rejeição liminar do pedido por falta de aptidão para processamento da desconsideração (ex.: defeitos, irregularidades e/ou ilegitimidade do sócio ou empresa), o juiz determinará ao Requerente que faça a emenda ou a complementação do requerimento (art. 321 do CPC/15). O mesmo entendimento vale para o pedido de desconsideração pela via incidental.
b) Incidente Processual
Caso o incidente de desconsideração da personalidade jurídica seja instaurado durante o processo de conhecimento e for deferido o pedido de desconsideração da personalidade jurídica do sócio ou da empresa, este passará a figurar no pólo passivo dademanda, podendo em caso de procedência da ação ser responsabilizado de forma secundária, colocando em risco seu patrimônio particular (art. 790, inciso VI do CPC/15).
Caso o incidente seja instaurado na fase de cumprimento de sentença ou em sede de ação de execução de título extrajudicial, a partir do deferimento do pedido o sócio ou sociedade será incluído (a) no pólo passivo da demanda e assumirá a posição de Executado (a), tornando possível o confisco de seu patrimônio particular.
No caso do pedido ser feito de forma incidental, o sócio ou sociedade serão considerados terceiros. Concluída a instauração do incidente será dada abertura ao prazo de 15 dias para a apresentação de embargos de terceiros (art. 135 do CPC/15).
- Suspensão do processo principal
Uma vez instaurado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica tradicional ou inversa, o processo principal será suspenso e assim permanecerá até o acolhimento ou rejeição do pedido (art. 134, §3º do CPC/15).
- Defesa do sócio ou da sociedade
Conforme já devidamente exposto, o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica tradicional ou inversa pode ser feito tanto na petição inicial, quanto de forma incidental.
Nota-se que a escolha por fazer uso da petição inicial ou do incidente processual vai ser crucial para determinar qual defesa será apresentada pelo sócio ou pela sociedade que for colocado (a) como responsável patrimonial secundário em uma demanda judicial.
É essencial, portanto, definir a qualidade processual do sócio ou da sociedade, se é parte ou terceiro no processo. Assim, se o responsável patrimonial secundário for parte, ou seja, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica foi feito no bojo da petição inicial, a defesa correta é embargos à execução (ou impugnação em caso de cumprimento de sentença). E, se o responsável patrimonial secundário for terceiro, ou seja, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica foi feito por incidente processual, a defesa correta é de embargos de terceiro.
Nota-se que após apresentadas alegações de defesa, será feita a produção das provas necessárias, tendo o ônus de produzi-las, a princípio, a parte que requereu a desconsideração da personalidade jurídica. Porém, nada impede que o juiz faça a sua inversão ou dinamização (art. 373,§1º do CPC/15).
- Recorribilidade
No que tange à recorribilidade da decisão que defere a desconsideração da personalidade jurídica, temos dois recursos cabíveis, dependendo do momento processual.
A decisão que rejeita, acolhe ou mesmo decide sem análise do mérito em razão de alguma imperfeição formal o pedido de desconsideração da personalidade jurídica tradicional ou inversa, se trata de uma decisão interlocutória (art. 136, “caput” do CPC/15) e, portanto, é recorrível através do recurso de agravo de instrumento, nos termos do art. 1.015, IV do CPC/15.
Frisa-se que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica poderá ser feito em segunda instância (art. 136, §U do CPC/15), nesse caso a decisão será proferida pelo Desembargador Relator de forma monocrática, ensejando a interposição do recurso de agravo interno (art. 932, inciso VI e art. 1.021 do CPC/15).
Vejam que o cabimento ou não de agravo interno contra a decisão proferida pelo Desembargador Relator durante o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é um assunto que ainda está em discussão na doutrina.
Parte da doutrina entende que nesse caso a decisão proferida pelo relator é irrecorrível, com base na interpretação analógica à irrecorribilidade por recurso de agravo de instrumento das decisões de mesma natureza proferidas pelo juízo de primeira instância. E a outra parte da doutrina entende que é possível a interposição do recurso de agravo interno, tendo em vista que o art. 1.021 do CPC/15 não excluiu as decisões monocráticas do relator do cabimento de agravo interno.
Conclusão
O procedimento que antes não era regulamentado formalmente hoje apresenta regras claras e precisas que asseguram o direito ao exercício de defesa (Princípio do Contraditório e Princípio da Ampla Defesa) do sócio ou da sociedade que sofreu a desconsideração da personalidade jurídica, impedindo com que constrições patrimoniais destas pessoas sejam feitas injustamente.
Mais do que um rito procedimental aplicável às situações em que é preciso desconsiderar a personalidade jurídica, o referido procedimento traz maior segurança e estabilidade às relações jurídicas empresariais.
Como consequência de uma criação jurisprudencial, assim como a desconsideração da personalidade jurídica tradicional e inversa, outras interpretações estão sendo feitas acerca deste instituto.
É possível identificar na jurisprudência pátria outra modalidade de desconsideração da personalidade jurídica, qual seja a desconsideração feita entre empresas do mesmo grupo econômico.
Portanto, é nítido o avanço que a recente legislação processual civil trouxe no que tange à regulamentação de atos executórios em face de sócios e sociedades empresariais, tornando mais segura e estável as relações jurídicas comerciais.
Referências:
[1]ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: teoria do processo e processo de conhecimento – 17ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. Pg. 523/526.
[2] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro – 3ª ed. – São Paulo: Atlas, 2017.
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 8ª ed. – volume único – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
[4] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. Op. Cit.
[5] ALVIM, Arruda. Op. Cit.