- Por Márcio Valentir Ugliara
Texto elaborado em 25/01/2016
Histórico
Tratando-se de assunto ligado ao sistema educacional e capaz de gerar inegável impacto nos indivíduos e na sociedade como um todo, cabem as reflexões abaixo com o objetivo de esclarecimento de questão jurídica de interesse geral e que se mostra recorrente, sem a pretensão de se esgotar o tema e considerando a existência de posições contrárias. Discutir o papel, dimensões e posicionamento do Estado e dos cidadãos na área educacional e em outros serviços públicos determinantes para o futuro do país é dever tanto dos operadores do Direito quanto de todos os cidadãos, o que ora é feito sem qualquer viés político-partidário ou religioso.
A referida ideologia, segundo a qual se propõe a educação das crianças sem distinção de gênero, objetiva em síntese permitir-lhes manifestar e desenvolver per si sua personalidade, preferências e inclinações físicas e emocionais sem qualquer indução histórica ou social pré-determinada, partindo do ponto que o papel social dos gêneros, tal qual o conhecemos, decorre da construção de uma sociedade heteronormativa, cuja dicotomia é a causa precípua de discriminação daqueles que não se encaixam nesse padrão. Segundo tal ideologia, mediante a desconstrução dos gêneros pré-estabelecidos, conseguir-se-ia uma sociedade mais igualitária e acolhedora das diferenças entre as pessoas.
Inobstante os efeitos desse tema já poderem ser estudados pela aplicação nos países nórdicos, no Brasil o debate se acelerou a partir do ano de 2014 com a Lei nº 13.005/2014, que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE). Em virtude das pressões políticas contrárias na atividade legiferante, retirou-se da referida lei qualquer menção à ideologia de gênero, porém esse diploma legal menciona expressamente como diretrizes a “superação das desigualdades educacionais” e “erradicação de todas as formas de discriminação”, atribuindo em seu artigo 8º aos Estados, o Distrito Federal e os Municípios a tarefa de elaborar seus correspondentes planos de educação, ou adequar os planos já aprovados em lei, em consonância com as diretrizes, metas e estratégias previstas no PNE, no prazo de 1 (um) ano contado da publicação da mencionada Lei.
Embora a Lei Federal tenha estabelecido as diretrizes de aplicação, transferindo o debate para a sociedade perante os Estados e Municípios membros da Federação, o Executivo Federal não se manteve equidistante e adotou posicionamento favorável à ideologia de gênero, chegando a criar por meio do Ministério da Educação um “Comitê de Gênero”, cujo nome foi mais tarde trocado por questões políticas para “Comitê de Combate à Discriminação”. Ademais, o mesmo Ministério firmou seu posicionamento favorável ao assunto por meio da Nota Técnica nº 24/2015, de 17 de agosto de 2015, na qual apresenta o entendimento a respeito da dimensão de gênero e orientação sexual nos planos de educação.
Em tal documento, menciona que a escola organiza um conteúdo curricular com base em conceitos heteronormativos (distinções sexistas nas aulas, filas de meninos e meninas, etc.), o que produziria um ambiente de intolerâncias aos não-heterossexuais, que não se encaixam nesses padrões, concluindo por reiterar a importância de se trabalhar as questões de gênero e orientação sexual nas políticas educacionais. (A nota técnica pode ser visualizada em http://www.spm.gov.br/assuntos/conselho/nota-tecnica-no-24-conceito-genero-no-pne-mec.pdf ).
A partir daí e ao longo do ano de 2015, as assembleias legislativas e câmaras municipais passaram a ser palco do embate entre os defensores e os contrários da chamada ideologia de gênero. Enquanto os primeiros entendem que as escolas devem estar preparadas para combater a discriminação de gênero e outras formas de preconceito, além de que a orientação sexual não significa incentivar a que a criança ou o jovem adote qualquer tipo de comportamento específico, os últimos defendem que a ideologia de gênero desconstrói o modelo tradicional de família, não sendo papel da escola e sim da família dar orientação sexual a crianças e jovens, que não estariam aptos a avaliar a questão.
No debate democrático travado nas diversas casas legislativas do Brasil, temos notado que a questão da ideologia de gênero vem sendo rejeitada em grande parte, mas trata-se de um tema recorrente que necessita de posicionamento maduro da sociedade. Apesar do PNE não mencionar explicitamente a ideologia de gênero (e também não proibí-la), o apoio ao tema pelo Ministério da Educação pode ensejar que nos deparemos no futuro com o aparecimento do assunto em materiais didáticos, de forma mitigada ou não explícita, o que requer debate e preparo por parte de todos. Afinal, até onde deve ir o Estado na prestação educacional ? Cabe ao Estado, aos genitores ou a ambos determinar tais questões ? quais as bases técnicas que podem auxiliar nesses questionamentos ?
Analisando o tema sem qualquer interesse político-partidário ou religioso, parece-nos primordial avaliar o quanto segue: 1- A ideologia de gênero pode se enquadrar em uma política pública geral ? 2- O arcabouço jurídico permite ao Estado inserir a ideologia de gênero na educação ? 3- Quais as consequências psicosociais ?
1- A ideologia de gênero pode se enquadrar em uma política pública geral ?
Do ponto de vista lógico, abolir a noção de gênero a fim de permitir uma definição pessoal por parte dos educandos somente atenderia especificamente aos casos de disforia de gênero, ou seja, naqueles indivíduos em que existe contradição entre o sexo biológico e o psiquismo. Nos demais casos não existe tal contradição com o sexo biológico, mas apenas um comportamento direcionado a padrões diversos do heteronormativo.
Nesse sentido, partindo de dados conhecidos que a disforia de gênero ocorre em parcela diminuta da população (estima-se que esteja entre 1% e 2% ou 1 a cada 50 nascimentos), não parece razoável propor uma política pública dessa natureza para a totalidade. Inserir mais de 98% da população nesse contexto não parece acertado sob a ótica da disforia de gênero.
Os objetivos nobres de consecução de uma sociedade mais justa e igualitária, com erradicação de todas as formas de discriminação (no caso a discriminação sexista), reside no fato de combater o preconceito que recai sobre a diversidade e não a divisão de gêneros. Se o aspecto primário dos gêneros masculino e feminino já está embutido nas características biológicas do indivíduo e os secundários são obtidos por construção cultural, não se pode imaginar estirpar da sociedade essas vertentes.
Dessarte, é tanto uma falácia culpar a dicotomia de gêneros pela discriminação sofrida por aqueles que estão dissociados de comportamentos heteronormativos, como não se pode propor como política pública medidas para abolir a força a dualidade masculina e feminina.
Nessa esteira de raciocínio, a política pública educacional geral e eficaz será toda aquela direcionada a prevenir e corrigir quaisquer formas de discriminação, promovendo a cultura da inclusão e aceitação geral da realidade multifacetada da humanidade, sem prejuízo da promoção de políticas específicas e direcionadas à questão da disforia de gênero.
Para os casos em que o filtro educacional não se mostre suficiente para a autodeterminação da vida pacífica e respeitosa em sociedade, restará a lei para aplicação de sanções aos que com sua conduta ilegítima atentarem contra a vida, igualdade, liberdade, dignidade e honra das pessoas.
2- O arcabouço jurídico permite ao Estado inserir a ideologia de gênero na educação ? cabe oposição dos pais ou responsáveis ?
Tratando-se de campo em que existe muita discussão a respeito, cabe a demonstração de nossa opinião sobre o tema.
O artigo 205 da Constituição Federal de 1988 estabelece que a educação é prestada pelo Estado e pela família com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Embora a disposição constitucional trate o tema aparentemente em co-participação, a família é instituição antecessora ao Estado e àquela é conferido o direito prioritário de dirigir a educação de seus membros, segundo suas convicções morais, filosóficas, políticas e/ou religiosas.
Nessa direção, aponta o artigo 26, nº 3 da declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
“Os pais têm o direito prioritário de escolher a educação para os seus filhos.”
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, a qual o Brasil é signatário, vai além ao estabelecer especificamente que esse direito de escolher a educação dos filhos envolve dirigir a educação conforme suas próprias convicções morais e religiosas:
“Artigo 12 – Liberdade de consciência e de religião
- Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.”
Voltando para nossa Constituição Federal e Leis Federais, temos outras disposições a respeito do destaque da família na escolha e direção do padrão educacional a ser provido aos filhos:
CF/1988:
“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”
Código Civil
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
I – dirigir-lhes a criação e a educação; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
Pela análise jurídica das disposições acima, resta evidente o papel preponderante da família em julgar o tipo de educação que seus filhos irão receber do ponto de vista moral, filosófico, político e/ou religioso , ou seja, decidir pela criação e educação é zelar pela formação moral, material e intelectual da prole em ambiente sadio. Ressaltando esse dever, o Constitucionalista José Afonso da Silva ensina o seguinte:
“A família é uma comunidade natural composta, em regra, de pais e filhos, aos quais a Constituição, agora, imputa direitos e deveres recíprocos, nos termos do artigo 229, pelo qual os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, havidos ou não da relação do casamento (art. 227, §6º), ao passo que os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
(Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 17ª edição. Editora Malheiros, página 819).
Nesse contexto, o Estado como ente de direito público é constituído para prover esse serviço por delegação da sociedade e em prol desta última. As diretrizes educacionais são incorporadas a esse serviço essencial via processo legislativo, que muitas vezes não refletirá a vontade geral, devendo ser assegurado àqueles que, ao se oporem a uma determinada linha pedagógica relevante, tenham acesso a alternativas viáveis para que os educandos recebam orientação diversa em respeito ao entendimento de seus pais ou responsáveis, desde que o tema se relacione ao ponto de vista moral, filosófico, político e/ou religioso.
No caso em análise, na hipótese da ideologia de gênero vir a ser ostensiva ou veladamente adotada e incorporada ao sistema de ensino, os dissidentes dessa linha educacional podem e devem exigir que seus filhos não recebam essa direção, devendo a lei e a escola assegurar um caminho educacional alternativo.
Em caso de recusa, o jurisdicionado deverá exercer seu direito de ação ao Poder Judiciário para discutir esse contexto.
Por segundo, existem aqueles que optam por não exigir do Poder Público a prestação educacional consoante seu entendimento moral, filosófico e/ou religioso e estão pleiteando o reconhecimento judicial do direito de se educar seus filhos em casa, o chamado “HomeSchooling”, que já é praticado em outros países. O tema ganhou repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal em maio/2015 por meio do Recurso Extraordinário nº 778141, ainda pendente de julgamento, em que se decidirá sobre a possibilidade, moldes, regulamentação e limites de sua adoção.
Vale lembrar que o tema ainda está em discussão, de modo que os pais ou responsáveis não podem deixar de matricular seus filhos em instituição de ensino para praticar “HomeSchooling” sem autorização judicial, sob pena de caracterização do crime de abandono intelectual, previsto no artigo 246 do Código Penal.
3- Quais as consequências psicosociais da Aplicação da Idelologia de Gênero ?
Por se tratar de questão técnica da área da Psicologia, a Associação de Direito de Família e das Sucessões – ADFAS encomendou a elaboração de estudo específico, que foi feito pela Profª Dra. Verônica A. da Motta Cezar-Ferreira (http://www.adfas.org.br/admin/upload/18012016%20Parecer.pdf), a qual faz uma interessante abordagem a respeito das implicações psicológicas advindas da aplicação da Ideologia de Gênero.
O parecer contextualiza a questão da ideologia de gênero sob a ótica psicojurídica, iniciando pelo histórico do surgimento dessa linha pedagógica, para posteriormente avaliar o mecanismo de desenvolvimento psicoemocional e psicossocial do ser humano, sem olvidar as considerações sobre o tema da disforia de gênero, objetivando encontrar os elementos técnicos para abordagem e solução da questão. Transcreve-se parte da conclusão da parecerista (grifos nossos):
“As crianças têm que ser educadas conforme sua identidade biológica para que haja coerência entre seu corpo e sua mente. Se não for essa a condição que se desenvolver, esse menino ou essa menina deverá ser aceito como for e puder ser.
O fato é que mesmo aqueles que têm condição homossexual, em sua maioria sabem-se homens ou mulheres, e não gostariam de ser outra coisa. Querem ser um homem que sente atração por outro homem, ou uma mulher, idem, mas não se sentem como se fossem do outro sexo ou de sexo nenhum.
Discriminação por razões de homossexualidade, etnia, religião ou outras precisa e deve ser combatida. Aceitar o diferente como ele é, é que faz a diferença, como diria Bateson (1986).
Implantar-se uma ideologia chamada de gênero é uma forma de opressão e discriminação tão grave quanto qualquer outra. São inimagináveis os prejuízos psicoemocionais e psicossexuais que podem advir de tal pedagogia.”
Inobstante a existência de opiniões em contrário, os argumentos técnicos apresentados no parecer em comento são relevantes para desaconselhar a nosso ver a adoção da ideologia de gênero como prática pedagógica no sistema educacional.
Conclusão
Diante de todo o exposto, conclui-se:
a) Os valores da liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana devem sempre pautar as ações do Estado Brasileiro no acolhimento de todos segundo as suas diferenças, promovendo políticas públicas de cunho geral e específico para acomodar e incluir todos os interesses, independentemente de cor, raça, sexo, religião ou orientação sexual;
b) A questão da ideologia de gênero como prática pedagógica a ser integrada ao sistema educacional não está expressamente prevista no Plano Nacional de Educação, mas esta mesma lei contém mecanismos para que essa discussão ocorra perante os Planos Educacionais de cada ente federativo e passe a integrá-los via processo legislativo;
c) O Poder Executivo Federal não está equidistante, tendo apresentado por meio do Ministério da Educação a Nota Técnica nº 24/2015, de 17 de agosto de 2015, na qual apresenta seu entendimento a respeito da dimensão de gênero e orientação sexual nos planos de educação, o que na prática significa aplicar os princípios da ideologia de gênero;
d) A família, na pessoa de pais ou responsáveis pode se opor à adoção dos princípios da ideologia de gênero, tanto por meio da manifestação de suas ideias mediante a participação política junto ao processo legislativo e Secretarias da Educação dos Estados, Municípios e Distrito Federal, quanto no ingresso perante o Poder Judiciário para exigir que a prestação educacional seja efetivada nos moldes de suas convicções morais, filosóficas, políticas e/ou religiosas;
e) Inobstante outras opiniões, temos que com base em pareceres psicológicos que desaconselham a adoção da ideologia de gênero na formação escolar, ante a possibilidade de ocorrência prejuízos psicoemocionais e psicossexuais aos educandos, posicionamos-nos contrários à Ideologia de gênero como apta a trazer benefícios à sociedade e ao sistema de ensino;
f) Os objetivos nobres de consecução de uma sociedade mais justa e igualitária, com erradicação de todas as formas de discriminação, reside no fato de combater o preconceito que recai sobre a diversidade e não a divisão de gêneros;
g) A política pública educacional geral e eficaz será toda aquela educativa direcionada a prevenir e corrigir quaisquer formas de discriminação, promovendo a cultura da inclusão e aceitação geral da realidade multifacetada da humanidade, sem prejuízo de políticas públicas específicas e direcionadas à questão da disforia de gênero.
O debate e discussão do Direito é um dos meios de aperfeiçoamento das instituições, a fim de garantir uma sociedade mais Democrática, Acolhedora e Justa.
Agradecimentos: Prof. Alexandre Sansone Pacheco